sábado, 7 de janeiro de 2017

Walter Salles & o road-movie

O homem é um animal político. Relacionar-se com outros homens e interagir com o ambiente são movimentos que precedem o seu encontro consigo mesmo. Desde os primeiros tempos, a jornada da nossa espécie foi profundamente marcada pelos constantes deslocamentos sobre a terra. Migrar mostrou-se uma necessidade vital frente a condição nômade da humanidade. Mais tarde, quando desbravar os oceanos ainda era um sonho arriscado, os relatos de viagem de quem havia embarcado nessa proeza impensável vinham atiçar a imaginação de seus leitores e ouvintes. Havia encanto e mistério, mundos desconhecidos, idílios prometidos. Assim, o homem abraçou o mundo. Hoje, passado tanto & tanto tempo, após tantas revoluções e avanços técnico-científicos, tomar a estrada para ganhar novos rumos ainda é uma realidade igualmente encantadora e misteriosa para nós. Seja por terra, água ou ar, seja movidos pelo desejo de aventura ou por contextos mais adversos, saltar dum canto para outro continua a representar a abertura de novas possibilidades, colocando-nos diante de realidades bem distintas das quais nos encontrávamos antes e trazendo, por consequência, inúmeros desafios.
Se a arte imita a vida ou a vida imita a arte, a discussão fica para outra hora. O que importa é que o cinema, com toda sua complexidade e magnitude, conseguiu capturar bem essa inquietação de vagamundo no gênero road-movie - o filme de estrada.

Route 66, lendária rodovia estadunidense

Para falar um pouco desse gênero, escolhi trazer um retalho da filmografia do brasileiro Walter Salles. Nascido no Rio de Janeiro, o diretor e produtor tem entre seus trabalhos mais notáveis filmes de estrada. Com roteiros precisos, limpos, fotografia pontual e muita sensibilidade, Salles encontrou no road-movie um terreno fértil no qual criar suas narrativas cinematográficas. 


Walter Salles
Pessoalmente, o filme de estrada se destaca para mim por ser o segmento que melhor consegue explorar uma suposta condição humana, seja do ponto de vista histórico, político, antropológico, filosófico ou psicológico. O road-movie é um filme demasiadamente humano. Estar na estrada é uma experiência de imersão tão grandiosa quanto excruciante; tão solitária quanto vasta de rostos e memórias. Não se trata de saber aonde vão os protagonistas ao final da sessão, mas sim quais caminhos eles terão de tomar para tanto e de que maneira cada um desses caminhos pode operar significativas mudanças nos personagens e em seus espectadores. 
Animal político por definição, o homem ao mesmo tempo que questiona seu ambiente, também responde ao seus estímulos. Ao mesmo tempo que reflete seu tempo e seu lugar, é agente de mudanças e grandes contestações. O road-movie, tão preocupado com a construção da identidade de seus personagens a partir das imprevisíveis situações vivenciadas na estrada, não se limita a configurar o retrato de mais um cara na multidão. Nem mesmo se assim quisesse. O filme de estrada constrói também a identidade de um período, de uma cultura, de valores. Isso o faz ainda mais completo e fascinante. Walter considera que "os roadie-movies mais interessantes são justamente aqueles em que a crise de identidade do protagonista reflete a crise de identidade de uma cultura, de um país".
O filme de estrada é, por si só, um filme alegórico. A crueza de desembarcar em territórios estranhos e descobrir-se estrangeiro... a estrada simboliza os caminhos que o herói trava dentro de si mesmo, num gesto de busca e transformação. A grande viagem do homem é a viagem do avesso. A viagem de dentro, do trabalho de desconstrução e construção de sua identidade. E é essa viagem que enfim o conduzirá ao seu destino. 
Sem mais delongas, segue aí uma lista com OS RODIE-MOVIES DIRIGIDOS PELO CINEASTA BRASILEIRO WALTER SALLES:
1º) Central do Brasil (1998):
Ecoando o Alice nas Cidades, de Win Wenders (tá aí um grande nome do roadie-movie!), o filme parte da amizade entre uma mulher que busca uma segunda chance e um garoto que quer encontrar suas raízes. 

Dora (Fernanda Montenegro) é uma mulher que trabalha na estação Central do Brasil escrevendo cartas para pessoas analfabetas; uma de suas clientes, Ana aparece com o filho Josué (Vinícius de Oliveira) pedindo que escrevesse uma carta para o seu marido dizendo que Josué quer visitá-lo um dia. Após um episódio trágico, Dora decide ajudar o menino e levá-lo até seu pai que mora no sertão nordestino. No meio desta viagem pelo Brasil eles encontram obstáculos e descobertas enquanto o filme revela como é a vida de pessoas que migram pelo país na tentativa de conseguir melhor qualidade de vida ou poder reaver seus parentes deixados para trás. O longa recebeu ampla aclamação internacional e duas indicações ao Óscar, de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz para Fernanda Montenegro.

2º) Diários de Motocicleta (2004):
O filme é baseado no relato de viagem "De Moto Pela América do Sul" escrito por Ernesto Guevara, que mais tarde se tornaria conhecido internacionalmente como o icônico comandante guerrilheiro e revolucionário Che Guevara. O filme narra a expedição de 1952 realizada por Guevara (Gael García Bernal) e seu amigo Alberto Granado (Rodrigo De La Serna, que coincidentemente tem um parentesco distante com Che) ao longo de toda a América do Sul. 

Esta longa viagem teve um papel crucial na formação do caráter e da visão de mundo de Guevara, tendo sido, muito possivelmente, a responsável pela radicalização de seu posicionamento, uma vez que, ao lado de seu companheiro, o jovem portenho conheceu a realidade do camponês pobre latino-americano, além de terem tido uma importante estadia numa casa de tratamento de hanseníase, no Peru. Diários foi a primeira incursão de Salles como diretor de um filme em um idioma diferente do seu nativo, português (espanhol, neste caso), e rapidamente se tornou um sucesso de bilheteria na América Latina e Europa. 

3º) On the Road (2012):
A trama do filme dispensa apresentações: baseada no livro homônimo do ícone beatnik Jack Kerouac, obra literária que tornou-se um clássico absoluto. Sal Paradise (Sam Riley), um aspirante a escritor, cai na estrada ao lado de Dean Moriaty (Garrett Heldlund) e sua jovem esposa Marylou (Kristen Stewart, numa atuação surpreendente) e juntos cruzam os Estados Unidos da década de 1950 numa viagem regada a muito jazz, sexo e drogas. O longa foi indicado a Palma de Ouro em Cannes. 


Não foi a primeira vez que Walter penetrou em área norte-americana para gravar em língua inglesa - Água Negra, de 2002, foi a estreia do brasileiro a Hollywood. Entretanto, On the Road atraiu para si maior atenção da crítica e do público, pois era uma adaptação bastante esperada e que se protelava há anos. Desde 1979 os direitos da obra de Kerouac estavam nas mãos de Ford Copolla (O Poderoso Chefão I, II, III), que terminou como produtor executivo do longa. A recepção ao filme foi controversa; mas vale a pena conferir a bela trilha sonora, a fotografia cuidadosa e avaliar a herança incomensurável que o movimento beat deixou, trazendo seu ar sujo e simultaneamente fresco de liberdade.


Para finalizar, uma avaliação do próprio Walter sobre o road-movie:
"O filme de estrada colide frontalmente com essa cultura conformista. Filmes de estrada são um convite para experimentar algo na pele, acima de tudo. Um convite para ir além daquilo que o espectador já viveu. Filmes de estrada são narrativas sobre aquilo que podemos aprender do outro, daqueles que são diferentes de nós mesmos. No mundo que confronta cada vez mais esses ideais, a importância do road-movie como uma forma de resistência não pode ser menosprezada."

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