segunda-feira, 19 de junho de 2017

Diário de filmes

O Pintrest é um dos meus lugares favoritos da internet para aqueles momentos em que você simplesmente quer rolar a tela infinitamente. Eis que, perambulando pelo site um dia desses, me deparei com um ideia que me capturou totalmente: film journals. Isto é, são diários de filmes nos quais você pode deixar registradas suas visões sobre o que assistiu. A Moleskine, marca de cadernos italiana mundialmente conhecida, produz e comercializa os tais film journals - e eles vem até com listas de festivais de filmes e seções organizadas alfabeticamente para preencher com informações a respeito das obras. Para quem não estiver disposto a comprar o diário original, montar o seu próprio a partir da customização de um caderno pode ser ainda mais divertido. 
Manter um diário do tipo parece ser uma experiência muito libertadora para a criatividade, além de um exercício puta legal para avaliar, após a sessão, tudo o que o filme representou para você - aquilo que mais gostou, o que mais deixou a desejar. E, ainda por cima, ter consigo sempre a memória dos bons dias e dos bons filmes - você pode, nas páginas, anotar a data em assistiu a tal filme e com quem. Eu selecionei algumas páginas de film journals que encontrei para inspirar; segue abaixo.










domingo, 11 de junho de 2017

MOVIE QUOTE: Before Sunrise, 1995


"Acredito que se há algum tipo de Deus, ele não estaria em nenhum de nós... em você ou em mim... mas nesse pequeno espaço entre nós dois. Se há algum tipo de magia nesse mundo, deve estar na busca de compreender alguém, compartilhar algo. Eu sei, é quase impossível de se conseguir, mas... quem realmente se importa? A resposta deve estar na busca."

quinta-feira, 8 de junho de 2017

A Poesia de Pasolini

Descrições que vão de versátil a controverso são geralmente empregadas para delimitar a figura de Pier Paolo Pasolini. Seu caminho na Sétima Arte é mais que conhecido, tendo produzido clássicos polêmicos, contestadores e inquietantes como "O Evangelho Segundo São Mateus" e "Teorema". Colaborou ao lado de Felini no roteiro de ''Noites de Cabíria'' e nos diálogos de ''A Doce Vida'' antes de dar seu primeiro passo solo na direção do filme ''Accattone - Desajuste Social'', em 1961. Pasolini, no entanto, é um homem de mais facetas que a que se deixava entrever por detrás das câmeras: era graduado em Literatura pela Universidade de Bolonha e trabalhou como professor, poeta e novelista. Merece destaque ainda seus estudos para a promoção da língua de onde era natural, o friulano.

O Pasolini escritor é, talvez, um lado do premiado cineasta ainda pouco conhecido no Brasil. Há cerca de dois anos a editora Cosac Naify lançou por aqui uma antologia em edição bilíngue que reúne o trabalho poético "experimentalista" do herdeiro do neo-realismo italiano. Convivem, nas mais de 300 páginas, temas sociais e políticos, aos quais Pasolini, enquanto ativista, era tão ligado, assim como a sensualidade, o amor e a memória - "parte deles em dialeto friulano, pode-se dizer que denotam uma sensibilidade extrema, confessionais e ao mesmo tempo voltados para a temática social.

Deixo aqui registrado um poema do diretor italiano que particularmente me arrebatou e com o qual topei no Escamandro. A tradução é de Cide Piquet e Davi Pessoa.

Versos do testamento
A solidão: é preciso ser muito forte
para amar a solidão; é preciso ter pernas firmes
e uma resistência fora do comum; não se deve arriscar
pegar um resfriado, gripe ou dor de garganta; não se devem temer
assaltantes ou assassinos; há que caminhar
por toda a tarde ou talvez por toda a noite
é preciso saber fazê-lo sem dar-se conta; sentar-se nem pensar;
sobretudo no inverno, com o vento que sopra na grama molhada
e grandes pedras em meio à sujeira úmida e lamacenta;
não existe realmente nenhum conforto, sobre isso não há dúvida,
exceto o de ter pela frente todo um dia e uma noite
sem obrigações ou limites de qualquer espécie.
O sexo é um pretexto. Sejam quais forem os encontros
― e mesmo no inverno, pelas ruas abandonadas ao vento,
ao longo das fileiras de lixo junto aos edifícios distantes,
que são muitos ― eles não passam de momentos da solidão;
mais quente e vivo é o corpo gentil
que exala sêmen e se vai,
mais frio e mortal é o querido deserto ao redor;
é isso o que enche de alegria, como um vento milagroso,
não o sorriso inocente ou a prepotência turva
de quem depois vai embora; ele traz consigo uma juventude
enormemente jovem; e nisso é desumano,
porque não deixa rastros, ou melhor, deixa um único rastro
que é sempre o mesmo em todas as estações.
Um jovem em seus primeiros amores
não é senão a fecundidade do mundo.
É o mundo que chega assim com ele; aparece e desaparece,
como uma forma que muda. Restam intactas todas as coisas,
e você poderia percorrer meia cidade, não voltaria a encontrá-lo;
o ato está cumprido, sua repetição é um rito; pois
a solidão é ainda maior se uma multidão inteira
espera sua vez; cresce de fato o número dos desaparecimentos ―
ir embora é fugir ― e o instante seguinte paira sobre o presente
como um dever; um sacrifício a cumprir como um desejo de morte.
Ao envelhecer, porém, o cansaço começa a se fazer sentir,
sobretudo naquela hora imediatamente após o jantar,
e para você nada mudou; então por um triz você não grita ou chora;
e isso seria enorme se não fosse mesmo apenas cansaço,
e talvez um pouco de fome. Enorme, porque significaria
que o seu desejo de solidão já não poderia ser satisfeito;
e então o que o aguarda, se isto que não se considera solidão
é a verdadeira solidão, aquela que você não pode aceitar?
Não há almoço ou jantar ou satisfação do mundo
que valha uma caminhada sem fim pelas ruas pobres,
onde é preciso ser desgraçado e forte, irmão dos cães.


 

domingo, 5 de fevereiro de 2017

A Trilogia das Cores

A França foi palco de uma das maiores mobilizações da História, que inaugurou a Idade Contemporânea e deixou seu legado tanto na política quanto na cultura do mundo ocidental. Em 1789, a Revolução Francesa hasteou a bandeira nacional sob o lema "liberté, egalité, fraternité". Liberdade, igualdade e fraternidade foram incorporadas como base para a formação de uma nova sociedade e de um novo tempo.

A Liberdade Guiando o Povo, Delacroix
No ano de 1989, em comemoração ao bicentenário da Revolução, o diretor polonês Krzysztof Kieślowski iniciou seu projeto denominado de Trilogia das Cores. Tomando emprestadas as cores da bandeira francesa e as palavras de ordem dos revolucionários, - as primeiras, empregadas na composição do ambiente psicológico e o famigerado lema como ponto de partida para as reflexões propostas - Kieślowski construiu três narrativas indispensáveis para qualquer cinéfilo. Mais que isso, na verdade: a Trilogia é uma obra essencial e inesquecível para quem tem sensibilidade.

Kieślowski, cineasta polonês
Foi nesse mesmo ano de 1989 que o planeta assistiu a queda do Muro de Berlim. Estava-se na iminência de uma mudança radical, que se anunciava com o Outono das Nações - isto é, a queda do comunismo no leste europeu. A Polônia, país de origem do cineasta, foi o palco primeiro de uma série de movimentos que se espalharam também pela Romênia, Hungria, Bulgária, entre outros.
Os anos 1990 trariam consigo a força do neoliberalismo, da globalização e da internet. Um mundo muito distinto daquele que Krzysztof Kieślowski e sua geração conheciam. Nascido na Varsóvia em 1941, o diretor começou sua carreira produzindo documentários focados principalmente na vida dos trabalhadores e soldados. Levou a visão e o aprendizado do período documentarista para os seus primeiros trabalhos com ficção. Depois, mudou os rumos de sua concepção artística, aproximando-se da representação de dilemas existenciais. Um cinema de poucos diálogos e, no entanto, intensa poesia imagética. Sem pedantismos, é claro; a arma de Krzysztof Kieślowski sempre foi seu olhar demasiadamente honesto.

Krzysztof Kieślowski e a atriz Juliette Binoche nas gravações
"Você faz filmes para dar algo ao público, para transportá-lo a outro lugar. Pouco importa se você vai levá-los a um mundo intuitivo ou a um mundo intelectual, pois o campo das superstições, adivinhações, pressentimentos, intuição, sonhos, todos compõem a vida interior de um ser humano, e essa é a condição mais difícil de se filmar. Tenho tentado chegar lá desde o início. Sou aquele que não sabe, aquele que está à procura."  -  Krzysztof Kieślowski


Ordem cronológica da Trilogia das Cores de Kieslowski

A Trilogia das Cores faz parte de sua fase francesa. Num período no qual a ordem que dominava parecia gradualmente desintegrar-se, nada mais adequado que reavaliar as divisas daquele que foi um dos momentos mais profundos da historiografia moderna. Mas o cineasta não objetiva fazer isso através de um ponto de vista coletivo. Ele transporta ao universo subjetivo, individual, os significados e implicações que as palavras liberdade, igualdade e fraternidade podem assumir. Afinal, o que era liberdade, igualdade e fraternidade, as tão célebres e brindadas palavras, à luz de um novo tempo, nos fins do conturbado século XX? Assim, compõe-se uma obra de caráter universal, na medida em que suas personagens experienciam dramas, questionamentos e inquietações inerentes à qualquer vivência humana.
Após o término da Trilogia, Kieślowski anunciou sua aposentadoria. Segundo ele, não havia nada mais a dizer. Pouco menos de dois anos depois o realizador faleceu durante uma cirurgia de coração e foi enterrado no Cemitério Powązki, na Varsóvia. Hoje, quase 21 anos passados desde sua morte, seus filmes, sejam eles da fase francesa ou polonesa, continuam, com seus silêncios, a roubar as palavras de seus espectadores.

TROIS COULEURS: BLEU (A LIBERDADE É AZUL, 1993)


Após um trágico acidente em que morrem seu marido e sua filha, a famosa modelo Julie (Juliette Binoche) decide renunciar sua própria vida. Única sobrevivente da tragédia, a mulher vê-se tendo que lidar com essas perdas e seguir sua vida. Ela se afasta de tudo e todos e assume o anonimato em meio a multidão parisiense. Essa existência fantasmagórica é abandonada quando ela decide se envolver com uma importante obra inacabada de seu marido, um músico de fama internacional, recebendo a encomenda de finalizar uma composição para coro e orquestra que havia sido encomendada ao seu esposo, uma canção pela unificação da Europa. A tarefa a levará a descobrir detalhes da vida do esposo que ela desconhecia, e a se envolver com um outro homem, amigo do casal. O filme foi indicado ao Globo de Ouro e recebeu os prêmios César e o Leão de Ouro no Festival de Veneza.  

TROIS COULEURS: BLANC (A IGUALDADE É BRANCA, 1994)


Neste segundo filme, Krzysztof flerta com o gênero da comédia para apresentar a inusitada história de um casal com diferentes origens. Após se divorciar da mulher que ama, a modelo francesa Dominique (Julie Delpy), o emigrante polonês Karol Karol (Zbigniew Zamachowski) volta a sua terra natal disposto a fazer uma fortuna e poder se vingar-se da ex-esposa. O longa recebeu o Urso de Prata no Festival de Berlim, na categoria melhor diretor.

TROIS COULEURS: ROUGE (A FRATERNIDADE É VERMELHA, 1994)

 
Valentine é uma modelo (Irène Jacob) que, certa noite, atropela um cão. Seguindo o endereço informado em sua coleira, a jovem chega até o dono do animal, um juiz aposentado (Jean-Louis Trintignant), que tem o estranho hábito de ouvir as conversas telefônicas de seus vizinhos. Por trás deste estranho comportamento, está o enigma de um homem cujo motivo vital é tomar posse da intimidade daquelas pessoas e acompanhar passo a passo o desenrolar de seus destinos. Este fato será o ponto de partida para o desenvolvimento de uma singular amizade. A película venceu o Prêmio César, além de ter sido indicada ao Óscar e a Palma de Ouro no Festival de Cannes.
 


segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Gênios da raça: François Truffaut, a Nouvelle Vague e a saga de Antoine Doinel

A Nouvelle Vague ribombou através do mundo. A vanguarda iniciada na França por volta dos anos 1960 trouxe uma proposta de ruptura estética e temática com o cinema que vinha sendo produzido no Ocidente até então. Depois da II Grande Guerra Mundial, o cinema tornou-se uma indústria e os filmes de estúdio hollywoodianos dominavam as telas da época; havia muita burocracia para quem quisesse entrar e ascender numa carreira cinematográfica. A Nouvelle Vague adotou uma postura de contestação diante desse arranjo e deixou cravada indelevelmente sua marca na história da Sétima Arte. Feita por jovens realizadores, permaneceu em diálogo com a juventude de baby-boomers que experimentaria as indagações da contracultura e agitaria as ruas da capital francesa e de outras cidades do planeta no famigerado ano de 1968.


MARCOS INAUGURAIS
É difícil estabelecer um ponto exato para o início da Nouvelle Vague. A expressão, traduzida como Nova Onda, foi cunhada pela jornalista francesa Françoise Giroud em 1958. Tratava-se de um mero rótulo para identificar cineastas com menos de quarenta anos atuando no final da década de 1960. A revista Cahiers do Cinéma, fundada em 1951, foi um espaço responsável por reunir esses realizadores e divulgar suas observações sobre cinema. Em 1953, com o auxílio de seu mestre André Bazin, François Truffaut conseguiu adentrar no grupo e conheceu outros jovens colaboradores da Cahiers, tais como Jean-Luc Godard, Jacques Rivette e Claude Chabrol. 

Capa da revista Cahiers du Cinéma
O MOVIMENTO (?)
A definição da Nova Onda enquanto movimento encontra resistência. O próprio Truffaut, alguns anos mais tarde, em 1962, chegou a fazer brincadeira dizendo que o único traço em comum aos autores da Nouvelle Vague era praticar o bilhar elétrico. Ele pontuou: "Não nos cansávamos de dizer que a Nouvelle Vague não é um movimento, nem um grupo, é uma quantidade, é uma apelação coletiva inventada pela imprensa para agrupar cinquenta novos nomes que emergiram em dois anos em uma profissão em que não se aceitavam mais do que três ou quatro nomes todos os anos.". Mas é certo que esses cinquenta novos nomes de alguma forma traziam em seus filmes algumas características semelhantes que ajudavam a identificar um filme Nouvelle Vague. Câmera na mão, montagens transgressoras, roteiro livre e ligado a temas cotidianos e tabus, amoralismo e foco no psicológico dos personagens foram algumas das novidades trazidas pela leva de diretores. Os filmes eram realizados com pequenos orçamentos, filmagens nas ruas e atores pouco conhecidos, interpretando personagens marginais como criminosos, rebeldes e adúlteros.

Carteira do cineasta François Truffaut durante Cannes, 1957.
 O SALTO
Sem sombra de dúvidas, a transição de 1959 para a nova década consolidou definitivamente a Nouvelle Vague. Le Beau Serge (Nas Garras do Vício, 1958), longa dirigido por Claude Chabrol, foi tido como o primeiro da Nova Onda, mas foi Hiroshima Mon Amour (Hiroshima Meu Amor, 1959), de Alain Resnais, que alcançou um novo patamar, sendo hoje considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema. No mesmo ano, Truffaut chegou com Les Quatre Cents Coups (Os Incompreendidos, 1959), filme que definitivamente alterou o panorama. Arrebatando público e crítica, Quatre Cents... lançou o feixe de reconhecimento que tornaria a Nouvelle Vague uma dos mais influentes vanguardas do cinema. O filme levou o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes e firmou entre Truffaut e o adolescente Jean-Pierre Léaud uma parceria duradoura. 

Capa do filme de 1959.


OS INCOMPREENDIDOS
François Truffaut, com cerca de 27 à época do lançamento do filme, viveu uma infância e adolescência um tanto conturbadas. Nascido na capital francesa, jamais conheceu seu pai biológico e foi rejeitado pela mãe. O menino foi criado pelos avós maternos até os 10 anos de idade, quando perdeu a avó e foi morar com a mãe, que estava casada com Roland Truffaut, que acabou registrando o garoto com o seu sobrenome. Foi o período mais difícil da juventude de Truffaut. Rechaçado tanto pelo pai adotivo quanto pela mãe, tornou-se em um mau aluno na escola e passou a cometer alguns atos de delinquência. Aos 14, abandonou a escola definitivamente e passou a viver de pequenos trabalhos e alguns furtos. Em texto de 1960 intitulado "Vida e paixão de Truffaut", o crítico, fundador da Cinemateca Brasileira e professor Paulo Emílio Sales Gomes escreve:
"Aos dezessete anos [Truffaut] encontrava-se num centro para menores delinquentes, depois de ter sido empregado de escritório e operário, e de ter participado ativamente de um movimento popular de cultura cinematográfica animados por Bazin. Foi este último quem tirou o jovem François do reformatório, ao mesmo tempo em que o iniciava no jornalismo cinematográfico. Três anos mais tarde, Bazin estava de novo às voltas com Truffaut, tratando de soltá-lo, desta vez, de uma prisão militar, onde se encontrava como desertor. Ao atingir a maioridade, François Truffaut era um nome temido na crítica cinematográfica francesa."

François Truffaut
Dessas memórias desastrosas, Truffaut arrancou inspiração para compor Les Quatre Cents Coups, seu primeiro longa-metragem e certamente o mais autobiográfico de sua carreira. O filme segue Antoine Doinel, um garoto de 14 anos que se vê enclausurado pelo autoritarismo na escola e arrasado pelo desprezo de sua mãe e de seu padrasto. Negligenciado, Antoine passa a faltar as aulas para frequentar cinemas ou brincar com os amigos, principalmente René. Com o passar do tempo, vivenciará algumas descobertas e cometerá pequenos delitos em busca de atenção até ser detido em um reformatório, levado pelos próprios pais.

Foto tirada nas filmagens de Les Quatre Cents Coups.
Dá para notar de cara a semelhança entre episódios da vida de Truffaut com o enredo de Quatre Cents... Por isso, Antoine Doinel é considerado o alter-ego do diretor. Personagem e criador compartilham um drama familiar, um mesmo sentimento de rebeldia e até mesmo as mesmas paixões: bem como Doinel no filme se encanta com a obra de Balzac, o escritor realista era um dos favoritos do cineasta. 
A carga pessoal depositada na constituição do protagonista faz de Antoine Doinel um personagem completo e complexo, repleto de nuances. Um personagem que salta para fora da tela e se aproxima do espectador, ao mesmo tempo que também o atrai para perto de si, para dentro de seu universo cinematográfico. Um personagem que merecia ser revisitado, uma vez que seu criador tinha muito a dizer.

JEAN-PIERRE LÉAUD
Com cerca de 14 anos, tal qual seu personagem, Jean-Pierre Léaud foi escolhido numa seleção, concorrendo com mais de 600 garotos. Sua capacidade de improvisar capturou a atenção do cineasta. Filho da atriz Jacqueline Pierreux e do ator e roteirista Pierre Léaud, Jean-Pierre teve uma infância bastante diferente daquela vivida pelo diretor. No entanto, isso não impediu que entregasse uma atuação sensível e surpreendente para alguém de sua idade, sem perder a desenvoltura e a naturalidade.


O sucesso do filme catapultou o nome de ambos pelo mundo. Truffaut tomou Léaud como aprendiz e assumiu o mesmo papel de mestre que André Bazin havia desempenhado em sua vida. Juntos, seguiram em muitos projetos de sucesso e a parceria abriu portas. Léaud esteve com outros diretores renomados, como Jean-Luc Gordard, Bernardo Bertolucci, Glauber Rocha e Cacá Diegues. Protagonizou também outros filmes de Truffaut, como a La Nuit Américaine (A Noite Americana, 1974). Mais que isso, existia um sentimento de sincera amizade e imenso respeito vindo dos dois lados.


Unidos pela arte, Léaud e Truffaut divergiram em certos momentos. Enquanto Truffaut parecia evitar o engajamento político (embora houvesse se posicionado contra a Guerra da Argélia), Jean-Pierre era um militante político. Em 1968 esteve no Brasil, no período da ditadura civil-militar, fazendo um discurso para centenas de estudantes da Universidade de Brasília, em Brasília. A cena aparece no documentário Barra 68 - Sem Perder a Ternura (2001) de Vladimir Carvalho. Essa opção por rumos distintos em hora nenhuma diminuiu a admiração mútua e a sintonia que havia entre o par.


A SAGA DE ANTOINE DOINEL
O personagem de Antoine Doinel ocupou mais outros três longas de Truffaut e um média metragem. Ao longo de vinte anos, Jean-Pierre Léaud deu vida - no sentido mais amplo que essa sentença batida pode ter - ao rebelde e deslocado Doinel, as suas aventuras e enrascadas. Os filmes seguintes assumiram um tom mais cômico sem, apesar disso, perder a sutileza ao abordar os dramas e dilemas de seus protagonistas. Dramas e dilemas por sua vez, simples - mulheres, memórias, indecisões - e densos em sua elaboração. Truffaut fala de questões absurdamente cotidianas sem banalizá-las e Léaud concede a elas a carga dramática que merecem, mantendo sempre a leveza e um toque amargamente bem-humorado. A forma como ator e diretor se doaram torna a identificação de quem assiste um fato incontornável. A história das desventuras de um órfão até a idade adulta não provoca piedade, não, nem se deixa cair em melodramas. É muito maior que isso. A saga de Doinel provoca no seu espectador profunda empatia, a sensação de compreensão e ternura, como se tivéssemos vivido cada situação ao lado de Antoine. 

Em ordem cronológica, todos os longas da saga de Antoine Doinel. 


Antoine Et Colette, média metragem protagonizado por Antoine Doinel.
Você pode ler a sinopse dos filmes clicando nessa lista aqui.
A trajetória de amadurecimento de Léaud se confunde com a de Doinel. Assistimos os dois envelhecerem, se apaixonarem e se desapaixonarem diante do público, num caminho onde um pouco do ator está em seu personagem, da mesma forma como o personagem parece estar entranhado no ator. É praticamente impossível distinguir. Isto certamente nos torna mais íntimos da história. Essa impossibilidade de dissociação fica marcante para nós e em nenhum momento representa uma limitação para Jean-Pierre. Na verdade, prova sua maestria ao encarnar o alter-ego de Truffaut. Nenhum outro poderia ter vestido a persona de Doinel tão bem.
 
Antoine Doinel no decorrer de duas décadas.
Infelizmente, Truffaut faleceu em 1984, vítima de um câncer no cérebro. Léaud tem hoje 72 anos e seu último filme, La mort de Louis XIV (A Morte de Luís XVI), foi lançado há pouco, em 2016. Passados mais de meio século desde o nascimento da Nouvelle Vague, o trabalho e dedicação do cineasta François Truffaut seguem a inspirar gerações de diretores, assim como a atuação de Jean-Pierre continua a ser lembrada e estudada por novos atores. E a saga de Antoine Doinel ainda detém o poder de impactar e enternecer cinéfilos de todas as partes. Truffaut e Léaud edificaram, juntos, não só um legado cinematográfico, como também uma amizade eternizada pela magia da arte.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Walter Salles & o road-movie

O homem é um animal político. Relacionar-se com outros homens e interagir com o ambiente são movimentos que precedem o seu encontro consigo mesmo. Desde os primeiros tempos, a jornada da nossa espécie foi profundamente marcada pelos constantes deslocamentos sobre a terra. Migrar mostrou-se uma necessidade vital frente a condição nômade da humanidade. Mais tarde, quando desbravar os oceanos ainda era um sonho arriscado, os relatos de viagem de quem havia embarcado nessa proeza impensável vinham atiçar a imaginação de seus leitores e ouvintes. Havia encanto e mistério, mundos desconhecidos, idílios prometidos. Assim, o homem abraçou o mundo. Hoje, passado tanto & tanto tempo, após tantas revoluções e avanços técnico-científicos, tomar a estrada para ganhar novos rumos ainda é uma realidade igualmente encantadora e misteriosa para nós. Seja por terra, água ou ar, seja movidos pelo desejo de aventura ou por contextos mais adversos, saltar dum canto para outro continua a representar a abertura de novas possibilidades, colocando-nos diante de realidades bem distintas das quais nos encontrávamos antes e trazendo, por consequência, inúmeros desafios.
Se a arte imita a vida ou a vida imita a arte, a discussão fica para outra hora. O que importa é que o cinema, com toda sua complexidade e magnitude, conseguiu capturar bem essa inquietação de vagamundo no gênero road-movie - o filme de estrada.

Route 66, lendária rodovia estadunidense

Para falar um pouco desse gênero, escolhi trazer um retalho da filmografia do brasileiro Walter Salles. Nascido no Rio de Janeiro, o diretor e produtor tem entre seus trabalhos mais notáveis filmes de estrada. Com roteiros precisos, limpos, fotografia pontual e muita sensibilidade, Salles encontrou no road-movie um terreno fértil no qual criar suas narrativas cinematográficas. 


Walter Salles
Pessoalmente, o filme de estrada se destaca para mim por ser o segmento que melhor consegue explorar uma suposta condição humana, seja do ponto de vista histórico, político, antropológico, filosófico ou psicológico. O road-movie é um filme demasiadamente humano. Estar na estrada é uma experiência de imersão tão grandiosa quanto excruciante; tão solitária quanto vasta de rostos e memórias. Não se trata de saber aonde vão os protagonistas ao final da sessão, mas sim quais caminhos eles terão de tomar para tanto e de que maneira cada um desses caminhos pode operar significativas mudanças nos personagens e em seus espectadores. 
Animal político por definição, o homem ao mesmo tempo que questiona seu ambiente, também responde ao seus estímulos. Ao mesmo tempo que reflete seu tempo e seu lugar, é agente de mudanças e grandes contestações. O road-movie, tão preocupado com a construção da identidade de seus personagens a partir das imprevisíveis situações vivenciadas na estrada, não se limita a configurar o retrato de mais um cara na multidão. Nem mesmo se assim quisesse. O filme de estrada constrói também a identidade de um período, de uma cultura, de valores. Isso o faz ainda mais completo e fascinante. Walter considera que "os roadie-movies mais interessantes são justamente aqueles em que a crise de identidade do protagonista reflete a crise de identidade de uma cultura, de um país".
O filme de estrada é, por si só, um filme alegórico. A crueza de desembarcar em territórios estranhos e descobrir-se estrangeiro... a estrada simboliza os caminhos que o herói trava dentro de si mesmo, num gesto de busca e transformação. A grande viagem do homem é a viagem do avesso. A viagem de dentro, do trabalho de desconstrução e construção de sua identidade. E é essa viagem que enfim o conduzirá ao seu destino. 
Sem mais delongas, segue aí uma lista com OS RODIE-MOVIES DIRIGIDOS PELO CINEASTA BRASILEIRO WALTER SALLES:
1º) Central do Brasil (1998):
Ecoando o Alice nas Cidades, de Win Wenders (tá aí um grande nome do roadie-movie!), o filme parte da amizade entre uma mulher que busca uma segunda chance e um garoto que quer encontrar suas raízes. 

Dora (Fernanda Montenegro) é uma mulher que trabalha na estação Central do Brasil escrevendo cartas para pessoas analfabetas; uma de suas clientes, Ana aparece com o filho Josué (Vinícius de Oliveira) pedindo que escrevesse uma carta para o seu marido dizendo que Josué quer visitá-lo um dia. Após um episódio trágico, Dora decide ajudar o menino e levá-lo até seu pai que mora no sertão nordestino. No meio desta viagem pelo Brasil eles encontram obstáculos e descobertas enquanto o filme revela como é a vida de pessoas que migram pelo país na tentativa de conseguir melhor qualidade de vida ou poder reaver seus parentes deixados para trás. O longa recebeu ampla aclamação internacional e duas indicações ao Óscar, de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz para Fernanda Montenegro.

2º) Diários de Motocicleta (2004):
O filme é baseado no relato de viagem "De Moto Pela América do Sul" escrito por Ernesto Guevara, que mais tarde se tornaria conhecido internacionalmente como o icônico comandante guerrilheiro e revolucionário Che Guevara. O filme narra a expedição de 1952 realizada por Guevara (Gael García Bernal) e seu amigo Alberto Granado (Rodrigo De La Serna, que coincidentemente tem um parentesco distante com Che) ao longo de toda a América do Sul. 

Esta longa viagem teve um papel crucial na formação do caráter e da visão de mundo de Guevara, tendo sido, muito possivelmente, a responsável pela radicalização de seu posicionamento, uma vez que, ao lado de seu companheiro, o jovem portenho conheceu a realidade do camponês pobre latino-americano, além de terem tido uma importante estadia numa casa de tratamento de hanseníase, no Peru. Diários foi a primeira incursão de Salles como diretor de um filme em um idioma diferente do seu nativo, português (espanhol, neste caso), e rapidamente se tornou um sucesso de bilheteria na América Latina e Europa. 

3º) On the Road (2012):
A trama do filme dispensa apresentações: baseada no livro homônimo do ícone beatnik Jack Kerouac, obra literária que tornou-se um clássico absoluto. Sal Paradise (Sam Riley), um aspirante a escritor, cai na estrada ao lado de Dean Moriaty (Garrett Heldlund) e sua jovem esposa Marylou (Kristen Stewart, numa atuação surpreendente) e juntos cruzam os Estados Unidos da década de 1950 numa viagem regada a muito jazz, sexo e drogas. O longa foi indicado a Palma de Ouro em Cannes. 


Não foi a primeira vez que Walter penetrou em área norte-americana para gravar em língua inglesa - Água Negra, de 2002, foi a estreia do brasileiro a Hollywood. Entretanto, On the Road atraiu para si maior atenção da crítica e do público, pois era uma adaptação bastante esperada e que se protelava há anos. Desde 1979 os direitos da obra de Kerouac estavam nas mãos de Ford Copolla (O Poderoso Chefão I, II, III), que terminou como produtor executivo do longa. A recepção ao filme foi controversa; mas vale a pena conferir a bela trilha sonora, a fotografia cuidadosa e avaliar a herança incomensurável que o movimento beat deixou, trazendo seu ar sujo e simultaneamente fresco de liberdade.


Para finalizar, uma avaliação do próprio Walter sobre o road-movie:
"O filme de estrada colide frontalmente com essa cultura conformista. Filmes de estrada são um convite para experimentar algo na pele, acima de tudo. Um convite para ir além daquilo que o espectador já viveu. Filmes de estrada são narrativas sobre aquilo que podemos aprender do outro, daqueles que são diferentes de nós mesmos. No mundo que confronta cada vez mais esses ideais, a importância do road-movie como uma forma de resistência não pode ser menosprezada."